quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Um homem simples X


Era o fim da linha, havia apenas tempo para mais um suspiro. Pensara em sua vida toda e tudo fazia sentido naquele momento, tal qual um puzzle que acabara de ser completo pela derradeira peça.

O vazio que era parte inalienável de sua alma ia desaparecendo à medida que o ar entrava em seus plumões, e por frações de segundo não havia dor, somente uma satisfação imensa. Sentia-se tal qual um balão que repleto de ar quente levanta voo e toma os céus em liberdade.

Eram tantas lembranças, que sentia diferente gostos e perfumes, sendo capaz de reconhecer um a um: desde o bolo de fubá da sua infância até a aguardente que tomara minutos atrás.

Seus olhos eram incapazes de diferenciar a realidade da lembrança, era como estar em todos os lugares que já estivera no tempo de um vislumbre. Praias, campos e montanhas misturavam-se e formavam uma paisagem absolutamente singular.

Então o seu corpo estatelou-se no chão com um sorriso de missão cumprida nos lábios por ter feito o que todo homem simples deveria fazer: viver seus princípios e morrer sem princípio algum, dando o último suspiro com a mesma intensidade daquele primeiro que dera quando acabar de nascer, tão ansioso pelo que viria!

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Um homem simples IX


O seu rosto aparecia estampado por toda a cidade, porém frente ao espelho não era capaz de se reconhecer.

Encarnava em todas as entrevistas que dava o típico sujeito realizado e parâmetro para a sociedade, mas tinha a certeza que tudo não passava de um véu que não demoraria a cair. Tanto fez por todos que esquecera de si próprio, e com a idade isso pesava-lhe.

Não tinha orgulho ou satisfação pelo que construiu mas era muito tarde para recomeçar ou ainda abdicar de seu passado.

As coisas, então, mudaram daí em diante. Ele adoeceu e durante meses afastou-se da vida profissional. Quando retornou a seu escritório encontrou toda a diretoria a sua espera, o clima era de velório e sobre sua mesa jazia a certidão de óbito: uma certidão de falência.

Mal havia sentado, levantou e de forma introspectiva gargalhou ensandecidamente. Aquele homem tão cheio de postura despiu-se de formalidades e carregando apenas a imensa sensação de liberdade que sentia, entrou em seu carro e dirigiu sem rumo por dias, até que Deus, segundo alguns concedeu-lhe as férias que tanto merecia, num lugar aonde ele teria a eternidade para cuidar de si mesmo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Um homem simples VII


Era dia. O sol brilhou enfim após semanas de céu nublado. Mesmo a fria paisagem urbana se enchia de cores, e pessoas, como formigas, deixavam suas casas e lotavam ruas e avenidas em êxtase.

Não poder-se-ia imaginar uma manhã mais aprazível... se não fossem pelas manchas de sangue no tapete de sua sala.

“Afogado em dívidas recorreu ao fio da navalha rasgando o seu pulso” – Escreveu um jornalista de um periódico local-.

Embora sendo ele mesmo o responsável por sua situação apurou-se ainda em tal publicação que “A morte chegou pelo correio. Veio pelas mãos de um inocente carteiro quem cumprindo sua rotineira incumbência deixara debaixo de sua porta avisos de cobrança”.

Mas quem se importa com um homem simples na coluna policial de um jornal regional? Era dia! O sol brilhou enfim aquecendo pessoas que lotavam ruas e avenidas temendo embolorar!